Indefinição sobre antidumping é uma das causas apontadas.
Patricia Comunello, de São Paulo
O executivo que é a cara dos calçadistas brasileiros está impaciente, nervoso e inconformado. A atitude de Milton Cardoso, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) e que comanda o grupo Vulcabras/Azaleia, um dos maiores fabricantes mundiais do setor, pode ser descrita como no jargão do cidadão comum seria de “chutar o balde”. Diante da demora do governo federal em tomar uma posição sobre o que o industrial qualificou de “alucinante” importação de pares da Ásia, Cardoso advertiu: “Estamos às portas de uma nova crise”. O fator que estaria gestando o cenário futuro de turbulência, a segunda em três anos, é a indefinição da aplicação de medidas antidumping contra concorrentes asiáticos. Cardoso denuncia que os processos de investigação estão parados “porque a Receita Federal se recusa a fornecer dados”.
O alvo da ira calçadista só muda de endereço. Em vez da China, Vietnã, Malásia e Indonésia são acusados de enviar produtos ao Brasil seguindo uma triangulação pela qual o calçado fabricado por chineses é despachado por meio dos três países. Também despontam mais recentemente vendas feitas a partir de Hong Kong e Taiwan.
“Nenhum deles é produtor de sapatos”, adverte o empresário. O Vietnã figurou como maior exportador ao Brasil, desbancando a China, em 2010 e somando US$ 128,6 milhões (alta de 326% ante 2006), seguido pela Indonésia, com R$ 63,6 milhões.
O dirigente, em entrevista na sexta-feira, na sede da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), denunciou que o pedido da entidade para estender a tarifação antidumping, oriunda do processo movido contra a China em 2008 e que levou 18 meses para ter resultado, ao trio está parado desde janeiro. Os dados de ingresso de produtos mostram importação de 7,3 milhões de pares da China em 2010, mas do país teriam saído 24 milhões de pares rumo ao Brasil. “Onde estão os 17 milhões dessa diferença: mudaram de nacionalidade nos porões dos navios ou foram parar no fundo do mar.”
Segundo Cardoso, estão ocorrendo reuniões semanais em Brasília para destravar as dificuldades. “O Brasil tem leis. Fazer o que os países estão fazendo é proibido. A autoridade tem de cumprir a lei. Da mesma maneira que uma empresa não pode contratar empregado sem registro”, contrapôs. A recente aproximação da Abicalçados com o governador Tarso Genro, que fez duras críticas a Vulcabras/Azaleia pela demisão de 840 funcionários em Parobé, atribuída à perda de competitividade devido à valorização do real, pode ser um canal de interlocução. Cardoso, que espera política fiscal mais agressiva dos gaúchos para o setor, acredita que Tarso pode conversar com a presidente Dilma Rousseff.
O temor de novas dificuldades encontra a indústria em um dos melhores momentos. Em 2010, a produção avançou 7,7% em volume, chegando a 894 milhões de pares. Para este ano, a previsão, segundo o responsável pelo Relatório Setorial, divulgado na Fiesp, Marcelo Villin Prado, diretor do Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), é de desempenho no limite da inflação, na faixa de 6%. Prado indicou consumo ascendente, que chegou a quatro pares per capita em 2010, e atentou para a atração que o mercado consumidor nacional deve manter sobre fabricantes. O diretor do Iemi recorda que no final de 2008 houve corte de 44 mil vagas, que foram recuperadas após o aumento da tarifa de importação.
Diante do inevitável, o presidente da Abicalçados confirma tendência de migração externa, que tem exemplos locais, além da Vulcabras/Azaleia – que abrirá unidade na Índia, Paquetá na República Dominicana, e Schmidt Irmãos, que fechou parque de Campo Bom e se mudou para a Nicarágua. No caso do grupo de Cardoso, as 840 vagas fechadas em Parobé se transformarão em cinco mil postos para indianos em quatro anos. Questionado sobre a diferença de custo entre um trabalhador na cidade gaúcha e o da nova operação, ele disse não recordar e sacou uma comparação bem familiar aos calçadistas nos últimos anos. “Na China, a relação é de 12 para um. Ou seja: o valor de uma hora aqui paga 12 horas de trabalho nas fábricas chinesas”. “Na Índia, a Vulcabras investiu R$ 50 milhões para produzir cabedais, que depois serão enviados a linhas de montagem no Brasil, onde a companhia fabricou 65 milhões de pares em 2010.”
“Estamos todos fazendo papel de bobos”, critica presidente da Abicalçados
O presidente da Abicalçados, Milton Cardoso, adverte para aumento de importações até de vizinhos como o Paraguai. Mercado de consumo ascendente, o Brasil é a bola da vez para uma indústria global que exporta 60% do que produz, com a China na liderança. “Daqui a pouco vamos importar sapatos do Vaticano”, ironiza Cardoso.
Jornal do Comércio – Como será a produção de calçados em 2011?
Milton Cardoso – O consumo cresce fortemente, em pares e com compra de unidades de maior valor. O brasileiro superou o consumo de quatro pares em 2010 e podemos chegar a cinco em quatro anos. O mercado tem dinamismo suficiente para manter esse ritmo. Mas as importações e o câmbio são um problema grave. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que impediria que o Real se sobrevalorizasse. No começo de 2009, o dólar valia R$ 2,20, e dois anos depois, os salários aumentaram 20% e o câmbio está em R$ 1,60. Se continuar desse jeito, a situação se degradará numa velocidade que poderá surpreender observadores menos atentos.
JC – Isso aumentará a migração de fábricas?
Cardoso – Há movimento claro de empresas gaúchas se mudando, algumas completamente e outras com unidades. Quem foi à América Central retomou o crescimento das vendas aos Estados Unidos e à Europa. Só um observador não atento não percebe o que está acontecendo. O governo se surpreende com fatos que estão pré-anunciados. Talvez tenha havido da nossa parte pouco alerta. Mas temos feito o melhor possível.
JC – Onde vai dar esta situação?
Cardoso – O momento é de definições. A indústria poderá surpreender na velocidade de reação a uma tendência colocada. O crescimento das importações é alucinante, com avanço de mais de 50% em valores sobre o primeiro trimestre de 2010. Em abril, foi ainda pior. Poderemos ser surpreendidos por um novo momento, semelhante ao do final de 2008. Não será por falta de aviso do setor que medidas deixarão de ser tomadas.
JC – O senhor disse que cresce a importação de calçado de maior valor. A tarifa antidumping adotada contra a China será suficiente para a atual concorrência?
Cardoso – Temos crescimento em todas as faixas de preços, mas os de maior valor sobem mais e elevam a cotação média. O sapato vale US$ 20 e chega a US$ 10. No caso chinês, o governo adotou a tarifa reduzida de US$ 13,04. O ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, declarou que o Brasil não usaria mais tarifa reduzida. Queremos a extensão da medida ao Vietnã, à Indonésia e à Malásia. Já constam como grandes exportadores para cá Hong Kong e Taiwan, que não têm nenhuma fábrica de calçado. Estamos todos fazendo papel de bobos. Daqui a pouco vamos importar sapatos do Vaticano.
JC – O Nordeste é mais atrativo que o Sul?
Cardoso – Na largada da migração para lá, havia diferença salarial muito grande, que hoje é 15%. O desequilíbrio não está mais na mão de obra, mas na mão dos governos. Os nordestinos são mais rápidos e agressivos e levam as empresas para lá. Se o governo gaúcho for mais ágil e tomar decisões reverte. O parque industrial do Estado está mais perto do mercado consumidor.
JC – O que o governo gaúcho pode oferecer?
Cardoso – O mesmo que os do Nordeste oferecem. Este assunto está sendo discutido no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e espero que se chegue a um consenso. No Nordeste, tem um fundo constitucional de desenvolvimento. O Sul tem bancos como Brde e Badesul.
JC – Como o senhor recebeu a reação do governador Tarso Genro?
Cardoso – Quando tem de resolver um problema, toma-se a decisão. Não vou falar com ele para tratar da situação de uma empresa, pois o problema aflige o setor, um dos mais importantes da economia. Se não se urge pelo setor, vai se urgir por uma empresa?
JC – Os governos gaúchos abandonaram os calçadistas?
Cardoso – Não foram tão eficazes como os governos nordestinos.
JC – Qual o destino da Azaleia em Parobé?
Cardoso – Temos lá o maior centro tecnológico do calçado. São 1,7 mil técnicos de alto nível, departamento de marketing e comercial, que continuarão lá. Espero que os agentes do Rio Grande do Sul permaneçam atentos, pois não existe em outro lugar do mundo um cluster como o gaúcho. Nosso coração e a cabeça ficam no Estado.
JC – E o resto do corpo?
Cardoso – São as fábricas. Se o governo não reagir, o Brasil inteiro perderá. O Estado ainda tem uma produção muito concentrada em calçado feminino, com certa barreira na importação (efeito da moda). Mas dados recentes mostram crescimento da entrada de itens femininos. São três ou quatro importadores e todos sabem os nomes. É o mesmo sapato que vinha da China e agora entra com certidão de nascimento do Vietnã.
Fonte: uol.com.br
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